UMA HISTÓRIA VERÍDICA – ACREDITE! NÃO
PRECISO JURAR!
João Eduardo Irion
Da Academia Santa-mariense de Letra
Crônica Publicada no Livro em “Prosa e
Verso III”
2011
Aí está a Márcia que não me deixa mentir. Ela viajava comigo e participou
da aventura da qual o herói foi o Mustang. Explico. Eu tinha, na época o Ford
Mustang 1.999. Era um carro e tanto, top de linha, com um motor 5.0 V-8 de 280
HP e cinco marchas, câmbio manual e piloto automático. O motor fazia um ronco
especial, agradável ao motorista, indicando potência, prometendo subir em coqueiros. Visto
de frente o Mustang encarava o observador como um ser fogoso com os dois faróis
como se fossem olhos fixos no observador, e os dois respiros do capô imitando
duas narinas abertas para respirar o máximo de ar. Visto de lado, o carro,
mesmo parado, parecia estar em plena corrida, tal o seu desenho aerodinâmico. Todos
sabem que o Mustang é uma raça de cavalos selvagens da América do Norte e o meu
Mustang merecia o nome porque não era um matungo. Era prateado o meu tordilho.
O Mustang placa CCL 5666
Pois naquela noite chegamos ao aeroporto de Porto Alegre no vôo que aterrisou
coisa de oito horas e dali fomos para o nosso apartamento, no edifício da Avenida
Independência, onde o Mustang, como sempre, nos esperava para nos levar a Santa
Maria. Era assim a rotina quando eu ainda trabalhava em São Paulo e
periodicamente vinha para o sul junto com a minha esposa. Nessa noite
resolvemos, antes de partir, ver a novela e por isso saímos de Porto Alegre lá
pelas onze da noite.
Viajamos pela BR 290 e cerca de uma hora
da manhã , paramos no restaurante Papagaio, que
fica junto ao trevo
da encruzilhada de 290 com
a estrada que
vai para Cachoeira
do Sul . A intenção
era tomar um café e comer alguma coisa . Entramos no
restaurante, os dois, com cara
de cansados, e eu , pior
ainda , arrastava os pés
com uma crise
de gota . Usávamos ainda
as roupas da vigem de São Paulo. Eu me vestia como um executivo , com terno e gravata e a Márcia, como
sempre elegante ,
usava tailleur com saia
preta e casaco
de veludo com
listinhas pretas (ela ainda se lembra). Parecíamos um
casal de velhos
bem de vida , com um carro importado novinho, viajando imprudentemente
solitários na calada
da noite, numa estrada famosa pelos assaltos aos turistas argentinos. Prometíamos ser uma presa fácil e muito
provavelmente cheia de dinheiro ,
além do carro
modelo pouco comum , com qualidades e beleza , formando
um conjunto
para gerar cobiça e atiçar
assaltantes.
O restaurante não estava totalmente deserto porque dois tipos ocupavam uma
mesa. Eu não lhes prestei atenção, mas a Márcia logo implicou porque fazia frio
e eles não paravam de entrar e sair do salão, ora um, ora outro, deixando a porta
aberta por onde entrava a friagem do minuano. Só depois do acontecido
entendemos que eles estavam nos observando, viram nossas bagagens, porque eu
abrira o porta-malas para pegar alguma coisa que a Márcia me pediu. As entradas
e saídas preparavam o assalto.
Saímos do restaurante e, no trevo, dobamos em direção à Cachoeira. Nessa viagem,
escolhi essa alternativa para ir a Santa Maria, devido às boas condições da estrada
e porque é o caminho mais curto. Naquela hora da madrugada, as estradas estavam
desertas. Logo um carro nos alcançou e ficou com luz alta atrás do Mustang. Nunca
imaginamos que eram assaltantes num automóvel. Nesse momento, estávamos a uns
80 por hora e a luz que refletia nos retrovisores me incomodava. Então eu disse
para minha mulher:
- Vou deixar esses chatos
passarem, porque a luz dos faróis me atrapalha.
Dito isso reduzi a velocidade pra uns 60 por hora. Então o outro carro
emparelhou com o nosso e passou a acompanhar o Mustang. Por alguns instantes,
os dois automóveis correram lado a lado. Ainda lembro que era um carro branco
do tipo Passat, mas não vi direito nem a marca nem o modelo.
De repente a Márcia, alarmada me disse:
-Irion, não olha, eles estão apontando uma arma para nós.
Até hoje minha mulher descreve o brilho metálico do revolver como e para
ela, pareceu ter um imenso cano ameaçador.
Sem mover a cabeça, pelo canto dos olhos, vi na janela aberta do banco do
carona, com a cara mais deslavada, sorrindo como se já estivesse vitorioso, o
assaltante apontando um 38 na nossa direção. Como sabia que era um 38? Realmente
não sabia, mas, na minha imaginação, essa era a arma típica dos assaltantes.
Os bandidos nos subestimaram. Eles viram no restaurante um velhote manco,
arrastando os pés que certamente não mereceria e nem saberia dirigir bem um
carrão daqueles.
-Afinal, carro esportivo é coisa de guri e não de velhos!
Para nossa sorte, os safados cometeram o erro de não nos fechar e assim
nos obrigar a parar. Acharam mais divertido nos assustar, “nos gozar” como se
diz na gíria. Assim se mantivera por segundos lado a lado com o Mustang, com a
arma ameaçadora apontada para nós. Não sabiam que o velhote tinha muita estrada
(calculo que já dirigi o equivalente a mais de 10 voltas à terra), percorrendo
todo tipo de estrada, desde picadas, tirando muito peludo em estrada de barro,
ou enfrentando congestionamentos em São Paulo ou a aventura das autoestradas dos
Estados Unidos. Não sabiam que eu estava treinado para dar umas “corridinhas”
com o Mustang. Não sabiam que, embora a placa do carro fosse de São Paulo, eu, como
gaúcho, conhecia palmo a palmo das estradas do Rio Grande, e especialmente
aquela que estávamos percorrendo. Dela eu tinha na cabeça todos os detalhes,
sabia onde estava cada curva, cada lombada, cada ponte, o estado do acostamento,
e o fato de não haver pardal e tudo mais. Sabia, por exemplo, que não havia
subidas fortes nem curvas acentuadas e sabia que o leito da rodovia estava
naquele dia em perfeitas condições, sem nenhum buraco (coisa rara), e por isso
era possível correr sem perigo.
Então num relâmpago, quase sem pensar nas duas possibilidades – parar
para sermos assaltados e provavelmente assassinados, porque víramos a cara dos
bandidos ou então tentar escapar, arriscando sermos alvejados optei pela fuga,
sem tempo de avisar minha mulher.
Como numa transmissão de pensamento, porém minha esposa, apavorada gritou;
- Corre, Irion!
Surpresos eles custaram a reagir. Então pelo retrovisor vi o clarão
quando o cara da janela atirou. Pisei mais fundo, e o ponteiro do velocímetro
subiu a 100, 115,120. Enquanto isso, a bala começou a se aproximar e eu
acelerava em segundos para 130, 140.
A danada da bala também acelerava, competindo com o
Mustang e disposta a cumprir sua obrigação de assassina que devia ferir um de
nós. Num instantinho, chegamos a 160 e depois a 180 enquanto vento assobiava, zunindo
no aerofólio traseiro. A bala desgraçada não desistia e acelerava e, mesmo a
220 e continuava a nos perseguir. São estranhos os pensamentos que passam pela
cabaça da gente nas horas de aperto. Por incrível que pareça lembrei da
definição de instantinho – “o espaço de tempo entre o sinal abrir e o cara do
carro de traz buzinar”
Eu grite para minha mulher:
- Pega o celular e telefona pra o 190! Chama a Policia Rodoviária! Chama
os brigadianos!
Logo ali tinha a primeira curva. Pensei: “agora faço a curva e a bala
segue reto pela tangente e estou livre”. Fiz a curva e, pasmem, a bala também!
-É da polícia, perguntou.
- Oi vó! Respondeu a Thaysa, reconhecendo a voz da Márcia. Nossa neta
ainda não tinha dormido e estava em Iporã do Oeste em Santa Catarina.
Sempre me intrigou como a ligação para a brigada foi atendida em Santa Catarina e,
coincidência estranha, logo no telefone da casa de nossa filha. Hoje, depois de
muito pensar e graças a meus profundos conhecimentos de física (mereço ou não o
Prêmio Nobel de Física?), cheguei à explicação lógica e cientifica, (como eu
não pensara antes?), – a mudança entre o numero discado e o que atendeu ocorreu
por causa do efeito Doppler-Fiseau.
Você sabe que esse efeito é devido a mudança de frequência das radiações
quando uma fonte emissora está em movimento muito rápido. Para os leigos,
explico com o exemplo: se um carro buzinando passa por você, na medida que se
aproxima e se afasta, muda gradualmente o tom da buzina passando a ser mais
agudo na aproximação e mais grave quando se afasta. Nessa altura da história o
Mustang estava tão rápido, mas tão rápido mesmo, que nossa extraordinária
velocidade alterou a frequência das ondas de rádio de chamada do celular,
forçando a mudança do número discado, fazendo uma ligação local se tornar
interurbana e interestadual.
Enquanto bala se achegava eu acelerava e a Marica gritava:
- Corre, Irion!
Tive tempo de acha isso muito interessante, mas muito mesmo, porque, em
geral, durante as viagens ela costumava dizer o contrário:
- Irion! Não corre!
E o meu pé, (nem me lembrava da gota), estava com força no fundo e o
carro corria e a bala vinha. Olhei para o painel e o ponteiro do velocímetro
estava no ponto máximo da escala do mostrador e mesmo assim eu acelerava mais e
mais, e o Mustang respondia. “Oigale” carro bem bom , parece dos fabricados em
Cacequí!”– pensei.
Logo adiante tinha um lançante que me deu esperança de escapar porque na
descida a bala passaria por cima. Engano! Pois sim! O carro começou a descer e
a bala também! Quase abria a janela para xingar “bala assassina , bala filha da
puta, vai-te à merda!”
Apenas pensei e felizmente não abri o vidro da janela porque se o
fizesse, a velocidade era tanta, mas tanta, que o ar do carro seria sugado, provocando
despressurização do cock pit (afinal estávamos numa corrida e esse é um termo
técnico que obrigatoriamente faz parte desta história). Isso seria fatal porque
o Mustang não é como os aviões de carreira que têm máscaras de oxigênio para
cair do teto quando há despressurização.
Olhei o retrovisor e vi que finalmente o carro e a bala tinha agora a
mesma velocidade e ela não mais nos alcançaria. Eu enxergava a bala na noite porque,
para minha surpresa, ela estava incandescente, do mesmo modo que um meteorito,
com o atrito, fica luminoso quando entra na atmosfera. Eu começara a “tirar luz”
da bala.
Então aconteceram os únicos dois fatos inéditos dessa história. O primeiro
foi no velocímetro, e vi o ponteiro trancar no fim a escala do mostrador e, com
a pressão, aos poucos foi entortando, entortando na medida que o carro acelerava
até que, já muito torto, se quebrou num estalo final. Até hoje estou chateado
com a quebra do ponteiro porque nunca soube a velocidade final que chegamos, o
que me impede de dizê-la com exatidão, (logo eu que sou tão amante das minúcias
e principalmente da verdade). E também me aborreci porque tive muito trabalho
para conseguir outro ponteiro igual. O segundo fato aconteceu com a bala a
qual, de tão quente, quando o chumbo atingiu o ponto de fusão e começou a
derreter, formando milhares de grãos que foram pingando, pingando no asfalto até
que a bala se esvaiu e tudo acabou.
Ai tirei o pé do acelerador, aliviado por estar livre dos bandidos. Sempre
imagino a cara daqueles desgraçados quando começou a corrida e imagino que até
hoje estão nos procurando.
Chegamos a Cachoeira fazendo em cerca de pouco mais de dois minutos os
trinta quilômetros da estrada. Nossa intenção era denunciar o fato. No primeiro
posto de gasolina paramos e perguntamos ao sonolento frentista pela policia,
depois de contar o ocorrido. Ele nos indicou a direção e saímos a procura dos
brigadianos, mas o frentista entendeu tudo mal e telefonou para a polícia
dizendo que alguém fizera um assado pilotando um Mustang. De vereda nos vimos
cercados por várias viaturas (termo que os soldados usam para suas conduções),
das quais desceram muitos brigadianos de arma em punho, entre eles uma
brigadiana porque o frentista dissera que um dos assaltantes era mulher. Depois
de muita confusão e explicação, desfeito o equívoco, passado o susto,
resolvemos pousar num hotel em Cachoeira.
Já na cama, antes de dormir pensei: “sou caçador de perdiz, estamos na
temporada e preciso d chumbo pra minha munição. Será d esperdício deixar todo
aquele chumbo na estrada”. Com esse pensamente fiz um plano e dormi.
No dia seguinte, depois do café, convidei a Márcia para irmos ao local
onde a bala derretera. Antes passamos num supermercado e compramos uma
vassoura.
Quando dirigia, estranhei o pára-brisa dianteiro que parecia embaçado.
Chegamos ao local onde a bala se finou e lá estavam, brilhando no asfalto, os
grãos de chumbo novinhos em
folha. Varremos e juntamos tudo, (penso que nada se perdeu).
Foi com esse chumbo que fiz minha primeira caçada no inverno de 1.999 e como
sempre, não errei nenhum tiro...
Na euforia, esqueci a vassoura na estrada, foi um dos prejuízos que tive
e, infelizmente, também perdi uma das provas da veracidade desse causo.
O resto da viagem
para Santa Maria
foi tranqüila , mas
o vidro do pára-brisa
continuava dificultado a visão da estrada . Quando
chegamos, encontrei a explicação lógica para o fato : quando inspecionei
o vidro verifiquei que
o pára-brisa estava côncavo
e embolsado para dentro
do carro , quase
fora da moldura
de borracha devido
a tão alta
pressão do vento que sofrera na corrida .
Repito e juro que
a história é verídica .
Tudo isso
aconteceu; fui muito fiel aos fatos ,
sem nada
de exagero . Minha mulher não
me deixa
mentir . O Mustang é a prova .
A vassoura se perdeu. Os chumbinhos ficaram todos nas perdizes
que cacei.
Pai este história é de mais," sempre me fino de tanto rir"!
ResponderExcluirQue bom. Débora!
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