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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O MUSTANG E A BALA ASSASSINA

UMA HISTÓRIA VERÍDICA – ACREDITE! NÃO PRECISO JURAR!

João Eduardo Irion
Da Academia Santa-mariense de Letra
Crônica Publicada no Livro em “Prosa e Verso III”
2011

Aí está a Márcia que não me deixa mentir. Ela viajava comigo e participou da aventura da qual o herói foi o Mustang. Explico. Eu tinha, na época o Ford Mustang 1.999. Era um carro e tanto, top de linha, com um motor 5.0 V-8 de 280 HP e cinco marchas, câmbio manual e piloto automático. O motor fazia um ronco especial, agradável ao motorista, indicando potência, prometendo subir em coqueiros. Visto de frente o Mustang encarava o observador como um ser fogoso com os dois faróis como se fossem olhos fixos no observador, e os dois respiros do capô imitando duas narinas abertas para respirar o máximo de ar. Visto de lado, o carro, mesmo parado, parecia estar em plena corrida, tal o seu desenho aerodinâmico. Todos sabem que o Mustang é uma raça de cavalos selvagens da América do Norte e o meu Mustang merecia o nome porque não era um matungo. Era prateado o meu tordilho.
                                               
                                           O Mustang placa CCL 5666

Pois naquela noite chegamos ao aeroporto de Porto Alegre no vôo que aterrisou coisa de oito horas e dali fomos para o nosso apartamento, no edifício da Avenida Independência, onde o Mustang, como sempre, nos esperava para nos levar a Santa Maria. Era assim a rotina quando eu ainda trabalhava em São Paulo e periodicamente vinha para o sul junto com a minha esposa. Nessa noite resolvemos, antes de partir, ver a novela e por isso saímos de Porto Alegre lá pelas onze da noite.
Viajamos pela BR 290 e cerca de uma hora da manhã, paramos no restaurante Papagaio, que fica junto ao trevo da encruzilhada de 290 com a estrada que vai para Cachoeira do Sul. A intenção era tomar um café e comer alguma coisa. Entramos no restaurante, os dois, com cara de cansados, e eu, pior ainda, arrastava os pés com uma crise de gota. Usávamos ainda as roupas da vigem de São Paulo. Eu me vestia como um executivo, com terno e gravata e a Márcia, como sempre elegante, usava tailleur com saia preta e casaco de veludo com listinhas pretas (ela ainda se lembra). Parecíamos um casal de velhos bem de vida, com um carro importado novinho, viajando imprudentemente solitários na calada da noite, numa estrada famosa pelos assaltos aos turistas argentinos. Prometíamos ser uma presa fácil e muito provavelmente cheia de dinheiro, além do carro modelo pouco comum, com qualidades e beleza, formando um conjunto para gerar cobiça e atiçar assaltantes.
O restaurante não estava totalmente deserto porque dois tipos ocupavam uma mesa. Eu não lhes prestei atenção, mas a Márcia logo implicou porque fazia frio e eles não paravam de entrar e sair do salão, ora um, ora outro, deixando a porta aberta por onde entrava a friagem do minuano. Só depois do acontecido entendemos que eles estavam nos observando, viram nossas bagagens, porque eu abrira o porta-malas para pegar alguma coisa que a Márcia me pediu. As entradas e saídas preparavam o assalto.
Saímos do restaurante e, no trevo, dobamos em direção à Cachoeira. Nessa viagem, escolhi essa alternativa para ir a Santa Maria, devido às boas condições da estrada e porque é o caminho mais curto. Naquela hora da madrugada, as estradas estavam desertas. Logo um carro nos alcançou e ficou com luz alta atrás do Mustang. Nunca imaginamos que eram assaltantes num automóvel. Nesse momento, estávamos a uns 80 por hora e a luz que refletia nos retrovisores me incomodava. Então eu disse para minha mulher:
 - Vou deixar esses chatos passarem, porque a luz dos faróis me atrapalha.
Dito isso reduzi a velocidade pra uns 60 por hora. Então o outro carro emparelhou com o nosso e passou a acompanhar o Mustang. Por alguns instantes, os dois automóveis correram lado a lado. Ainda lembro que era um carro branco do tipo Passat, mas não vi direito nem a marca nem o modelo.
De repente a Márcia, alarmada me disse:
-Irion, não olha, eles estão apontando uma arma para nós.
Até hoje minha mulher descreve o brilho metálico do revolver como e para ela, pareceu ter um imenso cano ameaçador.
Sem mover a cabeça, pelo canto dos olhos, vi na janela aberta do banco do carona, com a cara mais deslavada, sorrindo como se já estivesse vitorioso, o assaltante apontando um 38 na nossa direção. Como sabia que era um 38? Realmente não sabia, mas, na minha imaginação, essa era a arma típica dos assaltantes.
Os bandidos nos subestimaram. Eles viram no restaurante um velhote manco, arrastando os pés que certamente não mereceria e nem saberia dirigir bem um carrão daqueles.
-Afinal, carro esportivo é coisa de guri e não de velhos!
Para nossa sorte, os safados cometeram o erro de não nos fechar e assim nos obrigar a parar. Acharam mais divertido nos assustar, “nos gozar” como se diz na gíria. Assim se mantivera por segundos lado a lado com o Mustang, com a arma ameaçadora apontada para nós. Não sabiam que o velhote tinha muita estrada (calculo que já dirigi o equivalente a mais de 10 voltas à terra), percorrendo todo tipo de estrada, desde picadas, tirando muito peludo em estrada de barro, ou enfrentando congestionamentos em São Paulo ou a aventura das autoestradas dos Estados Unidos. Não sabiam que eu estava treinado para dar umas “corridinhas” com o Mustang. Não sabiam que, embora a placa do carro fosse de São Paulo, eu, como gaúcho, conhecia palmo a palmo das estradas do Rio Grande, e especialmente aquela que estávamos percorrendo. Dela eu tinha na cabeça todos os detalhes, sabia onde estava cada curva, cada lombada, cada ponte, o estado do acostamento, e o fato de não haver pardal e tudo mais. Sabia, por exemplo, que não havia subidas fortes nem curvas acentuadas e sabia que o leito da rodovia estava naquele dia em perfeitas condições, sem nenhum buraco (coisa rara), e por isso era possível correr sem perigo.
Então num relâmpago, quase sem pensar nas duas possibilidades – parar para sermos assaltados e provavelmente assassinados, porque víramos a cara dos bandidos ou então tentar escapar, arriscando sermos alvejados optei pela fuga, sem tempo de avisar minha mulher.
Como numa transmissão de pensamento, porém minha esposa, apavorada gritou;
- Corre, Irion!
Sem olhar para os bandidos, como se estivesse apensas prestando atenção na estrada, com um simples movimento no câmbio, reduzi da quinta para a terceira marcha e pisei fundo no acelerador. O motor respondeu roncando como um condenado e partindo dos sessenta por hora, o carro deu um pulo para a frente, tão forte que minha mulher foi comprimida contra o banco, e, em segundos, estávamos a 100 por hora, tirando luz do carro dos bandidos, e a possibilidade de nos fechar.
Surpresos eles custaram a reagir. Então pelo retrovisor vi o clarão quando o cara da janela atirou. Pisei mais fundo, e o ponteiro do velocímetro subiu a 100, 115,120. Enquanto isso, a bala começou a se aproximar e eu acelerava em segundos para 130, 140. A danada da bala também acelerava, competindo com o Mustang e disposta a cumprir sua obrigação de assassina que devia ferir um de nós. Num instantinho, chegamos a 160 e depois a 180 enquanto vento assobiava, zunindo no aerofólio traseiro. A bala desgraçada não desistia e acelerava e, mesmo a 220 e continuava a nos perseguir. São estranhos os pensamentos que passam pela cabaça da gente nas horas de aperto. Por incrível que pareça lembrei da definição de instantinho – “o espaço de tempo entre o sinal abrir e o cara do carro de traz buzinar”
Eu grite para minha mulher:
- Pega o celular e telefona pra o 190! Chama a Policia Rodoviária! Chama os brigadianos!
Ela procurou, afobada, o telefone na bolsa. estávamos a 240, passando a 250 e finalmente a 260 e quanto mais acelerava mais a bala se aproximava enquanto a Márcia tentava ligar para o 190.
Logo ali tinha a primeira curva. Pensei: “agora faço a curva e a bala segue reto pela tangente e estou livre”. Fiz a curva e, pasmem, a bala também!
-É da polícia, perguntou.
- Oi vó! Respondeu a Thaysa, reconhecendo a voz da Márcia. Nossa neta ainda não tinha dormido e estava em Iporã do Oeste em Santa Catarina.
Sempre me intrigou como a ligação para a brigada foi atendida em Santa Catarina e, coincidência estranha, logo no telefone da casa de nossa filha. Hoje, depois de muito pensar e graças a meus profundos conhecimentos de física (mereço ou não o Prêmio Nobel de Física?), cheguei à explicação lógica e cientifica, (como eu não pensara antes?), – a mudança entre o numero discado e o que atendeu ocorreu por causa do efeito Doppler-Fiseau.
Você sabe que esse efeito é devido a mudança de frequência das radiações quando uma fonte emissora está em movimento muito rápido. Para os leigos, explico com o exemplo: se um carro buzinando passa por você, na medida que se aproxima e se afasta, muda gradualmente o tom da buzina passando a ser mais agudo na aproximação e mais grave quando se afasta. Nessa altura da história o Mustang estava tão rápido, mas tão rápido mesmo, que nossa extraordinária velocidade alterou a frequência das ondas de rádio de chamada do celular, forçando a mudança do número discado, fazendo uma ligação local se tornar interurbana e interestadual.
Enquanto bala se achegava eu acelerava e a Marica gritava:
- Corre, Irion!
Tive tempo de acha isso muito interessante, mas muito mesmo, porque, em geral, durante as viagens ela costumava dizer o contrário:
- Irion! Não corre!
E o meu pé, (nem me lembrava da gota), estava com força no fundo e o carro corria e a bala vinha. Olhei para o painel e o ponteiro do velocímetro estava no ponto máximo da escala do mostrador e mesmo assim eu acelerava mais e mais, e o Mustang respondia. “Oigale” carro bem bom , parece dos fabricados em Cacequí!”– pensei.
Logo adiante tinha um lançante que me deu esperança de escapar porque na descida a bala passaria por cima. Engano! Pois sim! O carro começou a descer e a bala também! Quase abria a janela para xingar “bala assassina , bala filha da puta, vai-te à merda!”
Apenas pensei e felizmente não abri o vidro da janela porque se o fizesse, a velocidade era tanta, mas tanta, que o ar do carro seria sugado, provocando despressurização do cock pit (afinal estávamos numa corrida e esse é um termo técnico que obrigatoriamente faz parte desta história). Isso seria fatal porque o Mustang não é como os aviões de carreira que têm máscaras de oxigênio para cair do teto quando há despressurização.
Olhei o retrovisor e vi que finalmente o carro e a bala tinha agora a mesma velocidade e ela não mais nos alcançaria. Eu enxergava a bala na noite porque, para minha surpresa, ela estava incandescente, do mesmo modo que um meteorito, com o atrito, fica luminoso quando entra na atmosfera. Eu começara a “tirar luz” da bala.
Então aconteceram os únicos dois fatos inéditos dessa história. O primeiro foi no velocímetro, e vi o ponteiro trancar no fim a escala do mostrador e, com a pressão, aos poucos foi entortando, entortando na medida que o carro acelerava até que, já muito torto, se quebrou num estalo final. Até hoje estou chateado com a quebra do ponteiro porque nunca soube a velocidade final que chegamos, o que me impede de dizê-la com exatidão, (logo eu que sou tão amante das minúcias e principalmente da verdade). E também me aborreci porque tive muito trabalho para conseguir outro ponteiro igual. O segundo fato aconteceu com a bala a qual, de tão quente, quando o chumbo atingiu o ponto de fusão e começou a derreter, formando milhares de grãos que foram pingando, pingando no asfalto até que a bala se esvaiu e tudo acabou.
Ai tirei o pé do acelerador, aliviado por estar livre dos bandidos. Sempre imagino a cara daqueles desgraçados quando começou a corrida e imagino que até hoje estão nos procurando.
Chegamos a Cachoeira fazendo em cerca de pouco mais de dois minutos os trinta quilômetros da estrada. Nossa intenção era denunciar o fato. No primeiro posto de gasolina paramos e perguntamos ao sonolento frentista pela policia, depois de contar o ocorrido. Ele nos indicou a direção e saímos a procura dos brigadianos, mas o frentista entendeu tudo mal e telefonou para a polícia dizendo que alguém fizera um assado pilotando um Mustang. De vereda nos vimos cercados por várias viaturas (termo que os soldados usam para suas conduções), das quais desceram muitos brigadianos de arma em punho, entre eles uma brigadiana porque o frentista dissera que um dos assaltantes era mulher. Depois de muita confusão e explicação, desfeito o equívoco, passado o susto, resolvemos pousar num hotel em Cachoeira.
Já na cama, antes de dormir pensei: “sou caçador de perdiz, estamos na temporada e preciso d chumbo pra minha munição. Será d esperdício deixar todo aquele chumbo na estrada”. Com esse pensamente fiz um plano e dormi.
No dia seguinte, depois do café, convidei a Márcia para irmos ao local onde a bala derretera. Antes passamos num supermercado e compramos uma vassoura.
Quando dirigia, estranhei o pára-brisa dianteiro que parecia embaçado. Chegamos ao local onde a bala se finou e lá estavam, brilhando no asfalto, os grãos de chumbo novinhos em folha. Varremos e juntamos tudo, (penso que nada se perdeu). Foi com esse chumbo que fiz minha primeira caçada no inverno de 1.999 e como sempre, não errei nenhum tiro...
Na euforia, esqueci a vassoura na estrada, foi um dos prejuízos que tive e, infelizmente, também perdi uma das provas da veracidade desse causo.
O resto da viagem para Santa Maria foi tranqüila, mas o vidro do pára-brisa continuava dificultado a visão da estrada. Quando chegamos, encontrei a explicação lógica para o fato: quando inspecionei o vidro verifiquei que o pára-brisa estava côncavo e embolsado para dentro do carro, quase fora da moldura de borracha devido a tão alta pressão do vento que sofrera na corrida.
Repito e juro que a história é verídica. Tudo isso aconteceu; fui muito fiel aos fatos, sem nada de exagero. Minha mulher não me deixa mentir. O Mustang é a prova. A vassoura se perdeu. Os chumbinhos ficaram todos nas perdizes que cacei.


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