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quinta-feira, 13 de junho de 2013

O ÚLTIMO NÃO APAGA A LUZ


João Eduardo Oliveira Irion
Da Academia Santa-mariense de Letras

Crônica publicada no livro “Em Prosa e Verso IV” -2012
Da Academia Santa-mariense de Letras

O prédio hoje.


Nos anos vinte do século vinte, Cacequi já tinha cinema. Não sei com quantos anos vi pela primeira vez uma sessão no cine Rex: talvez com cinco anos e, se assim foi, o fato data do ano de 1934. Das sessões que vi guardo lembranças de infância, algumas que são vagas, outras muito nítidas, mas todas coloridas com a imaginação de criança, e a soma delas, as reais e as  imaginárias estão nesse relato.
O cinema em Cacequi começou antes de mim, mas mesmo assim ainda assisti a alguns filmes mudos. Lembro vagamente que a projeção se acompanhava de alguém tocando piano na frente do pano onde ocorria a projeção e que hoje atende pelo nome elegante de “tela”.
Como explicar a presença de um músico nessas sessões? Ele era necessário para encher a platéia de som, ganhando uns trocados, e agora penso que, depois do cinema ele tocava na bailanta da Rua dos Cachorros, a única rua que então tinha nome em Cacequi.
Lembro que o pano da projeção era molhado para ficar esticado e refletir melhor a precária imagem projetada. Lembro que os pagantes ficavam na platéia, e quem não podia pagar assistia ao espetáculo no outro lado do pano, vendo as imagens e os textos às avessas, sem que o fato fosse importante para essas últimas pessoas, quase todas analfabetas.
Depois veio o progresso. Foi no cinema Rex que os cacequienses viveram a sensação do primeiro filme falado e, bem mais tarde, assistiram ao primeiro filme colorido. Eu estive nas duas sensações, mas não lembro os nomes das películas projetadas.
Para minha visão de criança o cinema Rex era o maior prédio de Cacequi. Por fora a fachada, pintada de cinza, (ou era verde claro?), aparentava dois andares. No nível da calçada, existiam duas portas e um guichê para a compra das entradas. No andar de cima haviam três janelas.
A fachada era enfeitada com cartazes dos filmes, uns pendurados nas paredes junto às portas e outros colocados em cavaletes na calçada. Eles anunciavam o filme do dia e a programação da semana.
Por dentro do Cine Rex, no andar térreo, a platéia tinha piso levemente inclinado para facilitar a visão. As cadeiras no inicio, eram soltas, do tipo colonial com assentos de palha. Depois foram colocados renques de cadeiras ligadas umas às outras, com assentos dobráveis, formando dois conjuntos. Cada conjunto era separado das paredes por corredores laterais e um era separado do outro por um corredor central. Não havia estofamento nas cadeiras nem tapetes nos corredores, (pela modéstia do prédio e com por causa do areal das ruas de Cacequi, que não eram calçadas e por isso não haveria tapete que agüentasse.)
Na frente da platéia  estava o pano quadrado com uns dez metros de lado. Não havia palco.
Se, por fora, o prédio parecia existir dois andares, por dentro havia um só ambiente, suficientemente alto para ter, junto à parede oposta ao pano de projeção, onde estava o hall de entrada, um “mezanino”, nome elegante para designar o que o povo apelidava de “poleiro”, tal sua rusticidade. O dito mezanino era um piso que ia de lado a lado do prédio e tinha uma profundidade de uns dez metros, onde existiam duas toscas arquibancadas de madeira, do tipo usado em circos, com uns cinco degraus. Elas  ficavam de cada lado do quartinho central do que hoje seria chamado de cabine de projeção onde estava a única “máquina de cinema” (máquina projetora). A cabine tinha uma porta traseira e na frente, duas aberturas quadradas, cada uma com um palmo de lado, uma servia para a saída do facho de luz da projeção, levando as imagens em direção ao “pano” e a outra utilizada pelo operador da maquina, para controlar a projeção e examinar a platéia.
“Hoje vou de poleiro” dizia quem só podia pagar pouco, ou quem queria economizar, porque o preço da entrada do poleiro era muitas vezes menor que da platéia, não sei exatamente quanto, talvez um milréis para entrar na platéia e quinhentos réis para “ir” de poleiro. O público no poleiro era formado por peões, carregadores de malas da estação dos trens, changueiros, molecadas, guarda-freios, tucos, (nome dado aos ferroviários mais humildes que trabalhavam na conservação da linha férrea) e todos os outros que gostavam de cinema e não tinham muito dinheiro. Muitas vezes fui ver filmes de poleiro, especialmente os seriados e os farvestes (não se dizia faroestes), que chamávamos filmes de mocinho, e o fazia porque era mais sensacional assistir as proezas dos mocinhos junto com a gurizada.
Os filmes eram popularmente classificados em trailers, jornais, filmes de amor, comédias, filmes de terror, filmes de aventuras, farvestes, filmes de mocinhos e seriados. Não havia classificação para desenhos animados porque ainda não existiam desenhos de longa metragem e, só de vez em quando, “passava” um desenho do Michey ou do Popeye como complemento da sessão.
Os seriados eram compostos de episódios, já não lembro quantos, (uns dez talvez,). Passavam um por semana sempre depois de faroeste, num determinado dia que não lembro, acredito que todas as terças feiras. Cada episódio do seriado sempre terminava em suspense para deixar a gente na expectativa de ver, na semana seguinte, como o mocinho sairia da encrenca em que se metia no fim de cada capítulo. Era um desastre se perder um capítulo. Diziam que em Santa Maria e Porto Alegre a “gente podia ver de uma só vez um seriado i-n-t-e-i-r-i-n-h-o”, (e a palavra era praticamente soletrada por quem comentava o fato), para esse privilegiado causar inveja na gurizada. Lembro que vi, um a um, todos os capítulos de muitos seriados, entre eles o clássico “Flash Gordon no Planeta Mongo”, que empolgou a mim e a todo mundo infanto-juvenil e muitos adultos cacequiense, com as primeiras viagens espaciais, ainda que fossem imaginárias naquela época.
O cine Rex era equipado com só um projetor e, assim, o filme era passado por partes. A fim de cada parte, a projeção era interrompida para a mesma máquina de projeção rebobinar o filme e o operador colocar na projetora o rolo da parte seguinte. A interrupção tomava uns minutos e, nesse espaço de tempo, chamado de “intervalo”, a luz era acesa e se podia conversar, comprar balas, (não havia pipocas), e era oportunidade para conversa entre amigos e o flerte dos moços.
Algumas vezes, o filme rebentava e parava a projeção; outras vezes a interrupção acontecia quando o filme aquecia e queimava. Nesses intervalos anormais o filme era emendado, e foi assim que aprendi a colar filmes, consegui muitos pedaços de “fitas” resultantes desses remendos e minha curiosidade sobre técnica do cinema foi aguçada.
Nos intervalos, quanto eu “ia de poleiro” aproveitava a oportunidade para eu., quando ia de poleiro, meter a cabeça na porta da cabine e ver o concerto dos filmes,  olhar a rebobinagem e reposição dos rolos e para ver, para entender, como era a máquina de projeção. Dessa maneira, vi as partes essenciais do projetor: uma fonte muito forte de luz, (mais tarde quando meus conhecimentos de física avançaram no ginásio, soube que era um “arco voltaico”), na frente da luz, havia uma lente convergente e entre esses dois componentes o filme corria entre dois rolos, o de cima com o filme que ira passar e o de baixo para enrolar o filme já passado.
O arco voltaico era uma fonte de luz muito intensa e irradiava muito calor e às vezes queimava o filme quando ele não rodava na velocidade certa.
Ter um cinema numa vila era exceção no Estado, mas Cacequi tinha esse privilégio já no fim da década de 20, tudo graças a iniciativa de um pioneiro cujo nome nunca eu soube para aqui citá-lo, mas mesmo assim o homenageio para fazer-lhe justiça pela coragem, pioneirismo e iniciativa. O cinema foi possível porque já nessa época Cacequi tinha um segundo privilegio: possuir sua usina de luz elétrica de propriedade do Seu Zimmerman, a quem também presto homenagem pelo pioneirismo. A corrente fornecida era contínua e, por isso, a intensidade da iluminação dependia do número de lâmpadas acesas na vila, num determinado momento. Falo só de lâmpadas porque ninguém tinha outros aparelhos elétricos, salvo alguns rádios, uma vez que não havia, na época, refrigerador ou qualquer tipo do que hoje se chama de eletrodoméstico. Assim a intensidade da luz fornecida para cada lâmpada acesa dependia, em tempo real, do consumo das demais lâmpadas da vila.
O arco voltaico do projetor do cinema exigia muita energia e, enquanto o cinema estava funcionando, em todas as casas as lâmpadas esmaeciam e ficavam fracamente incandescentes. Quem estava em casa podia dizer quando o filme estava sendo projetado, quando estavam ocorrendo os intervalos ou quando a sessão terminava, tendo como base a variação na intensidade da luz das lâmpadas locais.
A luz só era fornecida à noite das sete às onze horas. Depois da sessão do cinema a luz piscava para indicar que, meia hora mais tarde, a usina seria desligada para Cacequi mergulhar no escuro ou na luz de velas e lampiões.
Termino contando que Cacequi teve outro cinema. Foi “o meu cinema”, o “cinema” que montei quando guri e para o qual me esqueci de dar nome. A curiosidade me deu oportunidade de ver como o projetor era formado e ver que o filme era transparente. Assim, copiando a “tecnologia”, construí meu primeiro projetor em uma caixa de madeira, (usei uma embalagem de chocolate que peguei na loja de meu pai), tendo no interior uma lâmpada de 100 Watts, colocada na frente de um refletor de farol de um Ford modelo A, (que não me lembro como o consegui). Orgulho-me de que, com os meus onze anos nessa época, já entendia de circuitos e nunca levei um choque lidando com corrente elétrica. Na frente da lâmpada, havia uma abertura por onde passava o “filme” vindo de dois rolos o de cima, o filme a passar, o de baixo o rolo já projetado.
Na frente da caixa ou “máquina”, entre ela e o “filme” havia um tubo para  suportar uma lente convergente na posição exata para por a imagem em foco no pano de projeção. Eu usava a lente que sobrava dos óculos da madrinha da minha mãe que eu, quando aprendi a falar, batizei de Maínha, apelido que pegou. Maínha, infelizmente, era cega de um olho como resultado de uma operação de catarata mal sucedida. Ela substituía, nos óculos que usava, a lente do olho cego por uma lente de vidro esmerilhado para esconder o defeito da órbita. A lente que sobrava era a lente da minha “maquina de cinema”.
 Foi quando cheguei ao Curso Científico que a Física me disse que minha “maquina de cinema” era um projetor do tipo classificado como diascópio.
Meus filmes, obviamente, eram sem movimento. Eu mesmo os desenhava ou então os copiava dos meus Gibis em uma longa tira de papel branco com cinco centímetros de largura, cada desenho era feito num quadrado de cinco centímetros de lado. Depois do desenho feito e colorido, eu passava azeite de cozinha na tira de papel para torná-la suficientemente translúcida para a projeção, (mais tarde usei papel encerado para dispensar o azeite).
Eu tinha, num galpão, uma sala só para as minhas “reinações”, como dizia Monteiro Lobato, meu autor favorito quando criança. Montei o meu cinema nessa sala e, toda vez que aprontava um novo filme, meus pais, a Maínha, meus irmãos e irmãs, os empregados da casa e a molecada da vizinhança vinham assistir. Minha “companhia produtora de filmes” se chamava “Fulgur Films” e tinha por emblema, (hoje logotipo), um raio saindo de uma nuvem. Tirei a palavra “fulgur” do latim porque significa “raio” e foi com o “fulgur” e com “raios” que, mais adiante no tempo, construí minha vida profissional. Por tudo isso eu considero o cine Rex como uma das portas de meu acesso ao mundo.


A bilheteria era assim. (Foto de Ani Irion Giacomelli)
Dizem que o último que sai deve apagar a luz. Quero fazer o contrário. Como o derradeiro frequentador ainda vivo, o último a sair da sala mágica do cine Rex, por meio desse depoimento não apago e, ao contrário, desejo manter acesa a luz da história dos primeiros tempos de manifestações culturais de Cacequi.


12 comentários:

  1. Parabéns pai está história é incrível, tens que nos contar mais e mais sobre tuas vivências, bjo, Dedé

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  2. Parabéns pai, esta história é incrível, tens muito a nos dizer no teu blog,bjos, Débora

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  3. Fantástica história Dr Irion! Fico no aguardo da próxima. Abraço. Anibal

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  4. Obrigado Aníbal. Vou tentar escrever a próxima.

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  5. Muito bom poder conhecer estas histórias, contadas de uma forma tão bela. Estou aguardando ansioso pelas próximas. Abraço!

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    1. Obrigado filho. Devo o sucesso daa página a ti e à Ivonete. abraços

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  6. Oi Sr. José Irion, meu nome é Ani, moro em Cacequi e sou filha da Alda Irion Giacomelli. Conheci o seu blog através do facebook pela Débora e li essa história e contei para a minha mãe. Ela lembrou do seu galpão e também lembrou que quando o Sr. tinha um filme novo, chamava os conhecidos e, cada um levava seu banco para assistir o filme. Ela também conheceu o cinema Rex e eu, hoje passei na frente de onde foi o cinema e bati uma foto da bilheteria. Abraço!

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    1. Ani, foi um prazer te conhecer. Obrigado pelas fotos do cinema Rex. Já as publiquei e a pagina ficou mais interessante. Abraços para ti e para a alca

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  7. Que forma poética de contar essa história tão linda! Com certeza a o brilho do Rex nunca se apagará graças a ti. Vou dormir e sonhar com isso tenho certeza. Bjs
    O prédio ainda esta lá? Vou ter que voltar pra tirar mais fotos.

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  8. Obrigado Cynthia. A foto do prédio já esta no blog e foi mandada pela Ani que mnor aem cacequi, filha da Alda Irion minha prima e filha do tio Frederico

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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